sábado, 23 de março de 2013




Quisera

Quisera dizer  quanto percalço percorri descalça, o quanto a cardíaca gota de sangue é choque, quisera lavar, deixar alva a alma, calma a palma, calva a mente, totalmente sem. Quisera apenas o miocárdio do meio-dia, que fosse exatamente assim, meu coração ensolarado, a pino.

Quisera esquecer-me por deveras tanto, quisera transmutar-me e me ver não mais no espelho, mas no poço de água que sou à sombra, neste poço de água à sombra, no qual eu sou...sombra.

Quisera uma fagulha de luz do dia. O dia é generoso, enquanto me acovardo e renego, porque a chispa luminosa vai se multiplicar no labirinto de espelhos que eu sou, buscando o minotauro que eu sou...mas que sempre me esconde de mim...

Quisera a liberdade ainda que tardia.
Ou a libertinagem que dá taquicardia.


(Marcia Pfleger)

sexta-feira, 15 de março de 2013

Divórcio

Tudo mudou, sem o menor conforto.
E a taça, tirada dos lábios num abrupto.
E os beijos cessaram, e o sol é morto.

(Marcia Pfleger - 2011)


domingo, 10 de março de 2013





OLHOS NO ESPELHO

Evito olhar-me nos olhos:
Não conheço esta que me encara 
E todo espelho é um abismo posto na horizontal...
Esta de aqui se pendura no sol da janela,
No jasmim que em horas vagas se insinua,
Na textura cambiante das pedras ao meio-dia...
Mais sombria é a que me contempla do espelho...
Perguntaria ela: de nós duas, quem é o joio, quem o trigo?
Ou contaria – para meu horror – que algo híbrido vingou
Neste solo úmido
De rancores, de amores...


(Marcia Pfleger)





sábado, 9 de março de 2013

Recordar é viver...Aí vai um pequeno revival de algumas coisas que escrevi na minha adolescência... Pessoalmente, gosto muito desta cantiga abaixo (in november/1986...).

Cantiga de Inverno

Cai a chuva, doce e contínua
num suave embalo de menina
cantando nas poças luminosas e frias,
enquanto a legião das nuvens, afora,
brinca serenamente no cinza que chora
brinca sem notar tanta melancolia

Vem a emoção passada das horas remotas
ao ver as folhas, travêssas, virar cambalhotas
na brisa que gira num estertor...
E borboletas exaustas procuram abrigo
Nas mãos românticas do galho amigo
que oferece entre os dedos uma flor

O vento vai levando a lembrança
dos tempos antigos, da alma mansa,
desmanchando as palavras pelo caminho.
E a saudade redobra ao ver entre o tumulto
as asas cansadas de um pássaro oculto,
que, como eu, aquece-se sozinho...

E, de repente, a solidão magoa
Se, então, o pássaro angustiado voa
e na distância também se some.
E então é brisa e chuva e canto
o murmúrio triste deste acalanto
que te procura a gritar teu nome...

(Marcia Pfleger - 1986)




sexta-feira, 8 de março de 2013

Acabo de abrir a caixa de avelórios e eis que as contas de vidro se revelam como um mantra. É hora de retirá-las novamente da caixa, e a caixa, da gaveta...  Qualquer hora, conto para vocês a história do homem sob o toldo vermelho... Por enquanto, deixo aqui os antigos poemas, de pedaços de mim (alguns) que já não existem.




Soneto XX
(Bucólico)

Canteiros verdes, floridos...uma cigarra...
É suave a tarde sobre os arados...
O vozerio dos pássaros, uma algazarra
ao sol que debulha grãos dourados

Recostada sobre a enxada, pensativamente
à névoa lilás do entardecer no horto,
caiu-me o coração - se fez semente:
a vida ressurgiu no peito morto.

Ser assim, sempre assim: verão na alma.
Regar na chuva as lágrimas desfeitas
Tê-las ressuscitado com pureza

E num pacto de amor à Natureza
ter, em estações de fúria ou calma,
mãos capazes para quaisquer colheitas.

(Marcia Pfleger, escrito em 1993)





O prisioneiro

Estudei o lugar
onde fora colocado.
O sol era minha bandeira na alta janela
e a raiva, a minha coragem.
O tempo passou e não teve jeito:
aos poucos, além do corpo,
a alma sente-se aprisionada.
E fica-se esperando não mais a oportunidade,
porém, o milagre.
O tempo corrói as verdades guardadas
e tudo parece
distante e obsoleto...
Um dia parece distante!
Dão-nos comida, água,
algum livro de versos baratos;
esqueceram de nós.
A janela, cada vez mais alta e mais estreita.
Dão-nos comida, água,
um dentifrício, e
que importa?
A bílis se apodera de todas as minhas partes.
As mãos emboloram no suór do medo.
Medo.
Medo de quê?
De não mais sair,
de não mais gritar,
de não mais se ouvir!
A voz paralisada
de um simples operário
é uma gangrena
corroendo, amortecendo a si próprio.
Quem compreenderia este ópio terrível?
A quem poderia falar
do que representa a liberdade para mim?
E o que antes me fazia caminhar
hoje lembra o meu aleijamento...
E acho que fiz um grande estrago em mim mesmo
e não atingi sequer uma janela
do castelo de monstros
contra o qual me erguera.

Meus olhos inchados de escuridão...
Minha boca quente de silêncio...
O cabelo ralo e os braços finos como lanças;
quem dera pudesse com eles
trespassar o escudo dos carrascos,
fugir para a alvorada, mesmo tiritando,
mesmo comendo das lixeiras,
aprendendo com as moscas e os ratos
no momento em que a sobrevivência
transforma o homem em qualquer coisa.

Sonho agora com uma
pequena
liberdade: a minha.
Por isso, fracasso com meus amigos,
fracasso com minha luta
mas não fracasso com a vida.
E, se ontem
sentia sede de justiça,
hoje, sem remorsos, estendo o prato
para pedir comida ao algoz
porque tenho fome.
Muita
fome.


(Marcia Pfleger - 21/09/1992)

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