quarta-feira, 15 de abril de 2015



Já leu o conto "Venha ver o pôr do sol", de Lygia Fagundes Telles? Quer saber se ela consegue escapar? Então... leia a continuação da história no meu conto "Crepúsculo Solferino"...


Crepúsculo solferino

(Uma continuação de Márcia Pfleger, inspirada no conto “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles)

                A tarde estava silenciosa. Nenhuma criança brincava de roda nos arredores, como da última vez. Ao longe, casas esparsas e, mais além, alguns casarões antigos, remanescentes de um tempo de glória da região, que há muito havia terminado.
                Ricardo caminhava vagarosamente. Mas não andava à toa, como quem passeia aproveitando a erma quietude do lugar. Tinha destino certo.
                Chegou ao grande portão do imenso cemitério abandonado. “Vivos e mortos, desertaram todos, meu anjo”, lembra ter dito a Raquel. De fato, as lápides rachadas, cobertas pela hera, denunciavam que o cemitério fora desterrado ao esquecimento: essa morte que é maior que a própria morte.
                O dia estava abafado e um vento lúgubre agitava as árvores, parecendo sussurrar mensagens fúnebres. Ricardo avançava para o interior do cemitério, seus passos ecoavam estranhamente no cascalho. Por um momento pareceu indeciso. Percorreu com os olhos a imensidão dos túmulos em ruínas, a tristeza dos mausoléus que se recortavam contra o céu gris. Reconheceu o caminho e, bem devagar, recomeçou a andar, a cabeça baixa, os olhos apertados.
                Um frêmito nervoso percorreu-lhe o corpo quando avistou a capela. Ali embaixo, na catacumba secular, há mais de um ano, trancara a amante infiel. Como estaria o corpo?, pensou tomado de uma excitação mórbida. Ricardo não fazia ideia do que sobrava de uma pessoa após um ano de sua morte. Ele teria desejado voltar lá antes, bem antes, enquanto Raquel estivesse moribunda, frágil, já sem um pingo de arrogância. Então, então ele lhe falaria de seu imenso amor, de como ela havia destruído seus sonhos, de como ela merecia expiar essa pena tortuosa... Mas não podia. Muito arriscado. O marido a procurava, a polícia, com certeza, havia dado uma busca pelo desaparecimento. E, se por um acaso remoto, a descobrissem? E se ele estivesse lá? Não. Muito arriscado. Corria um boato sobre transformar as velhas edificações e outras ruínas do local em patrimônio histórico. Não lhe agradava a ideia de que outros quebrassem aquela paz, profanassem o que estava fadado a permanecer no esquecimento. E se entrassem na velha capela, e se descessem as escadas fantasmagóricas da catacumba? E se o interrogassem?
                Ele fora impecável. Ninguém jamais descobriria. Ninguém o conhecia nas redondezas. Convidara Raquel “um último encontro, por favor”, e ela viera escondida de tudo e de todos. “Vou lhe mostrar o mais belo pôr de sol de sua vida”, prometera. Viera sozinha, pousando os pés incautos sobre uma teia invisível de aranha. “Este é o local que você gostaria de me mostrar?”, zombara ela quando entraram no cemitério. Ela sempre zombara dele, lembrou com raiva. Zombara de seu amor, de sua paixão, trocando-o por outro homem. “Ele é riquíssimo”, contara para espezinhá-lo.
                “Venha ver, Raquel, aqui nas catacumbas”, dissera-lhe naquela tarde, apontando o retrato em uma das gavetas fúnebres. “É incrível como ela tem os seus olhos, Raquel”. E a tola – pensou -,  curiosa como o são todas as mulheres vaidosas, foi descendo, um a um, os degraus de seu destino... Então, no momento em que ela se inclinava à luz do fósforo para olhar o retrato amarelado da defunta, Ricardo trancou a porta gradeada, encerrando-a para sempre no interior do mausoléu.  “Há uma frincha na porta, meu anjo. Por ali, você verá o pôr de sol mais belo de sua vida”, disse na despedida.
                Os gritos de Raquel ainda ecoavam na lembrança: primeiro, aterradores, embrutecidos; depois, distantes, quase ausentes; finalmente, na entrada do cemitério, apenas o fantasma de um lamento. Seria o vento nas árvores que trazia esse som de precipício? A cantiga de roda das crianças continuara...
                Parou em frente à capela. Só para se certificar, correu a vista ao redor: não havia ninguém. Tateou o bolso e retirou nervoso o molho de chaves de onde balançavam um cortador de unhas, um canivete e, entre outras, a chave que buscava. Uma chave nova, da fechadura que dava acesso ao lôbrego recinto.
                Abriu as portas da capela, cobrindo parte do rosto com a gola do blusão, prenunciando miasmas putrefatos. “O que sobrou de você”, murmurou com rancor.
                Estava escuro, bem mais escuro que da última vez, pois a tarde, então, era ensolarada e não tinha esse aspecto cinzento, de luto verdadeiro. À direita do altar, na semi obscuridade, a grade que levava às sepulturas parecia inalterada. Um pensamento louco, contraditório, nascido de uma tênue esperança, ocorreu-lhe: “E se estivesse viva?”... É claro que não. Se resistira ao terror da situação, mesmo assim, não teria sobrevivido mais que poucas semanas. Nada de água. Nada de comida. Nada de luz. Sepultada viva.
                Girou a chave e lentamente empurrou a porta enferrujada. Desceu apenas o primeiro degrau e esperou que seus olhos se acostumassem à quase completa escuridão. Aos poucos, começou a distinguir contornos, formas, detalhes. Lá embaixo, em um canto, finalmente os olhos encontraram, com terror, o que procurava. Então, um remorso agudo rasgou-o ao meio! “Raquel”, gemeu. Dobrando os joelhos, Ricardo chorou convulsivamente.
                Eram gritos desesperados, inumanos...

************

                Alguns dias mais tarde, a milhares de quilômetros dali, a mulher jogou o jornal sobre a cama. Estava tudo consumado, pensou. E deu um sorriso. Embora o marido a tratasse com mimos, enchendo-a de compensações, Raquel já estava sentindo que viver na Europa estava sendo mais entediante do que previra. Agora, poderia voltar.
                O marido a achava, às vezes, estranha, ausente. Desde aquele misterioso assalto, há mais de um ano, a esposa costumava entrar num estado em que parecia totalmente ensimesmada. (Nem o passeio de duas semanas ao Oriente a tinha feito esquecer o trauma). Em tais momentos, Raquel tornava-se pensativa e, nesses devaneios, seus olhos verdes se escureciam, denunciando um brilho cruel.
                É claro que era cruel, sempre o fora. Não era a isso que devia tudo o que tinha conquistado, não era a isso que devia, até mesmo, a própria vida? Não fora esse laivo de impiedade que lhe deu a coragem? Não fora, sustentou Raquel para si mesma, esse desprezo pela fraqueza – tanto alheia quanto própria – que a salvou?
                Ah, como havia sido ingênua, tola mesmo, ao aceitar aquele convite. Um psicopata! E o pior: como foi que chegara a ter, veja só, um romance com ele! Bem fizera trocando-o por outro, menos debiloide e, além de tudo, milionário.
                As sombras daquele cemitério ainda pairavam em seus olhos. Só a perspectiva de que Ricardo pôde ser capaz de desejar-lhe tanto mal, tanto, tanto, causava desconforto. Mas, agora, estava tudo consumado. Recostou-se no parapeito da janela de onde vislumbrava o mar e rememorou tudo minuciosamente. Ela fora perfeita.
                Fechou os olhos e se viu novamente na velha escada da catacumba. Pela fenda da porta da capela, a luz irisada desaparecia, os últimos vestígios de luz. A garganta doía-lhe de gritar e um tremor de pânico se espalhava pelo corpo, como se mil tarântulas lhe percorressem as veias. Por um instante, pensou desfalecer. Agarrada às grades enferrujadas da porta, recusava-se a descer onde repousavam as criptas. Logo, ela seria mais uma naquela multidão de cadáveres do velho cemitério.
                Mesmo sabendo ser inútil, ainda tentou sacudir as antigas grades, onde a fechadura nova, trocada por Ricardo, reluzia nos últimos respingos de luminosidade. Passou a noite ajoelhada e agarrada às grades. Com desalento, recordou que ninguém sabia onde estava. Ninguém jamais poderia imaginar. Ninguém jamais a ouviria gritar. Ninguém entraria no velho cemitério.
                Num instante, a escuridão ficou absoluta. Aqui e ali, aterrorizada, escutava ruídos. Nenhum lugar é completamente silencioso à noite.
                Já chorara várias vezes e, ansiosamente, suplicantemente, aguardava a chegada do dia, quando teria ao menos um pouco de luz para enxergar, sem que a imaginação projetasse horrores na escuridão.
Nauseada, vomitou ali mesmo, no alto da escada, e a exaustão que isso causou lhe trouxe até certo alívio. Depois, recostou a cabeça na grade, resignada, já sem forças. Apenas esperava a manhã.
Quando o céu foi perdendo o negrume e adquiriu aquele tom de azul que permite certa visibilidade, percebeu que a aurora se aproximava. Uma réstia de luz passava pela frincha da porta. Imbuída de novo alento, outra vez sacudiu as grades, várias vezes, diversas vezes. Com as mãos em forma de garra, tentava puxar a fechadura, em vão.
Foi quando seus olhos, involuntariamente, sutilmente, deslizaram apenas um pouquinho, um átimo à direita da fechadura. Então, voltaram... vagarosos, criteriosos, estudando a possibilidade. Raquel deu um passo atrás, a respiração em suspenso. Olhou da fechadura nova ao velho caixilho engastado nas paredes de taipa e pedras. As pedras eram pequenas, ovaladas e, talvez, algum dia tivessem sido brancas. Agora eram escuras, manchadas, com fungos proliferando em algumas partes.
Quanto mais examinava, mais a ideia fazia sentido. Remexeu afoitamente a bolsa à procura de algo apropriado. Foi adivinhando o pente, as luvas, os cigarros, os óculos de sol, a carteira, os fósforos (pegou os fósforos), um batom e, então, no fundo da bolsa, achou a caneta de metal. Presente elegante de uma amiga (nunca pensou que seria tão útil). Acendeu um fósforo e examinou com os dedos delicados o caixilho e a parede. Quase os acariciava, enquanto os olhos sondavam a expectativa. Enrolando a suave echarpe de seda em torno das mãos, começou a apunhalar devagar o sutil espaço entre o caixilho e a parede. Enfiava a caneta nos ângulos, como se quisesse rasgar o estuque, golpeava com firmeza, os cabelos em desalinho, os dentes cerrados.
No começo, pareceu-lhe que nada acontecia. A parede mostrava-se sólida. Com o tempo, aos poucos, um pedacinho começou a esfarelar. Raquel estava totalmente concentrada, totalmente presente no que fazia. Ao notar os progressos da empreitada, chegou mesmo a sentir certo prazer naquilo tudo.
Súbito, a caneta entortou e as costas das mãos se arranharam nas grades sujas. Começou o trabalho novamente, porém ficara mais difícil; com a ferramente deteriorada, as pedras pareciam irredutíveis. Bateu, bateu, bateu (as mãos já sangravam). Caiu no choro e esfregou o rosto com as mãos feridas. Após um momento de autopiedade, o gosto do sangue na boca deu-lhe novo ânimo, revitalizando-a como se fosse uma vampira.
“Calma, Raquel”, disse a si mesma. Recomeçou com calma, calculando cada golpe. Começou a fazê-los um sobre o outro, em um mesmo ponto, até que sentisse a taipa voltar a esfarelar.
Cerca de duas horas depois, conseguiu fazer um pequeno buraco por onde enxergava a lingueta cintilante da fechadura. Aproximou os olhos do buraco para observar o caixilho. Tratava-se de uma moldura inteiriça, com uma fenda retangular no meio, por onde passava a tranca. A fenda era um pouco maior, delatando que a antiga fechadura (a original) era mais robusta. Isso dava uma pequena folga à porta, evidente quando a chacoalhava.
Escavou mais um pouco, (a testa úmida de suor), mais ainda, até que a tranca ficasse à mercê de seu vandalismo. Respirando com júbilo, acendeu um fósforo e desceu à catacumba. Olhando para o chão, encontrou o que precisava: um pequeno pedaço de ruína, uma pedra que cabia inteira na palma da mão.
Subiu as escadas e com vigor golpeou a pedra no caixilho enegrecido. Viu que não ia ceder. Uma ratazana passou correndo por entre suas pernas. Raquel levou um susto. Num canto, viu os olhos miúdos do roedor brilharem. Certeira, esmagou-o dando várias estocadas com a pedra, descarregando toda sua frustração. O animal guinchou.
Quando se voltou, ofegante, para o caixilho percebeu: poderia entortá-lo com força no sentido do pequeno espaço cavado na parede! E assim fez, golpeando metodicamente com a pedra. O trabalho era lento, o ferro frio é difícil de malhar. Teve a ideia de esquentá-lo, fazendo uma pequena labareda com alguns cartões que estavam na carteira, gastando quase todo conteúdo da caixa de fósforos.  Teve resultado...
Finalmente (as mãos doíam), terminou. A tranca da fechadura poderia passar pelo caixilho violado. Tentou abrir, mas não pôde! “Vamos, estou quase saindo”, instigou. Raquel sacudiu violentamente a porta meio desconjuntada. “Se a suspender um pouco, quem sabe...”. Então, com uma sensação de regozijo, conseguiu. Estava livre!
Abriu devagar a saída do cárcere macabro. Encaminhou-se à porta da capela, perto das janelinhas empoeiradas, “já amanheceu...”. Girou o trinco e esta não estava trancada. Tão infalível Ricardo achara seu plano, que nem se dera o trabalho de trocar a fechadura desta!
Num longo hausto respirou o ar da liberdade. Ah, quão sutil é a linha entre a vida e a morte! Às vezes, um pouco de determinação e astúcia podem fazer toda a diferença.
Só neste momento Raquel se deu conta de que estava com sede – mas isso não era importante agora. Ao lusco-fusco percorreu depressa a via de cascalho que levava ao portão do cemitério. “Escapei, maldito”, pensou com fúria e alegria. Mas... e se ele voltasse? Estacou. E se descobrisse que fugira? E se Ricardo começasse a persegui-la para terminar o intento assassino? Não, Raquel não poderia chamar a polícia, não poderia contar a verdade – o marido, ciumentíssimo, iria querer satisfações do porquê fora se encontrar às escondidas com o ex-amante.
Começou a pensar. Ou melhor, a idealizar. Ao esposo, diria que tinha sido assaltada e largada em um lugar distante. A pretexto de trauma, pediria-lhe para não envolver a polícia e nem tocar mais no assunto. Quanto ao seu algoz... ah, Ricardo teria uma grande surpresa!
Olhou ao redor, o lugar era mesmo deprimente e assustador. Lápides em ruínas, mármores partidos, tudo, tudo abandonado. Mas, tinha tempo. Ainda mal amanhecera...
Com uma cruz de ferro caída de um túmulo dirigiu-se novamente – assombrada com a própria audácia – para os fundos do sinistro cemitério. “Acho que será um bom instrumento para o que preciso fazer depois”, pensou.
A primeira coisa seria desentortar o caixilho, recolocar a tranca no lugar e os pedaços de estuque na parede. Tinha certeza de que Ricardo voltaria, afinal o vira guardando as chaves. A porta deveria parecer inviolada. Deixaria na catacumba algumas coisas, entre elas, a bolsa (sem dinheiro e documentos, é claro), o que serviria também de álibi para o “assalto”. Então, ao encontrar o que precisava em um dos túmulos quebrados do cemitério, arrumaria tudo, impecavelmente. A vingança seria perfeita.
- O que está fazendo, querida?
Raquel abriu os olhos. Um crepúsculo esplêndido, solferino, a surpreendeu. A voz do marido a trouxera de volta ao presente.
- Estou admirando o pôr do sol, sorriu enigmática.
O esposo a abraçou e ficaram juntos a contemplar o horizonte matizado, os barcos que navegavam ao longe, sentindo a brisa marinha acariciar o rosto, em completa paz.
Sobre a cama, a página aberta de um jornal brasileiro trazia uma estranha notícia... Em um ermo vilarejo, dentro de um antigo cemitério abandonado, fora encontrado um homem – morto recentemente. Ao lado do seu corpo estavam uma bolsa e uma echarpe apodrecidas, que não tinham identificação. Mas o que realmente intrigava, eram as circunstâncias insólitas do suicídio. Os peritos tentavam desvendar um mistério: por que o homem se matara, cortando os pulsos, abraçado apaixonadamente a um cadáver centenário...


Marcia Pfleger 
(Dossiê Woolfiana 2 - Mulheres Escritoras do Século XX e XXI, compilado por Mauro Scaramuzza Filho, para a UFPR)



               



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